terça-feira, 10 de abril de 2007

AGOURO


Tarco Lemos



Acordei com a gritaria. Os dois já estavam sentados na areia, esburacando o chão. Eu não estava com vontade de nada. Fiquei um bom tempo olhando o basculante, sentindo a brisa que entrava, o cheiro da manhã ainda verde. O farfavalhar das folhas e palmas do lado de fora trazia para dentro de casa cheiro de flor de cajueiro. As goiabeiras também estavam florando. Horácio ficou me olhando um tempo pelo basculante enquanto eu fitava os caibros e as teias de aranha e fingia não vê-lo. Quando ele cansou, disse “vamos ver o nenê da Célia? Ele chegou ontem.” Bocejei bem alto e não sei por qual motivo, topei. Ele se animou e entrou em casa correndo pra lavar as mãos e vestir uma camisa. Ele queria era sair para a rua, pois naquele tempo não nos era permitido sair sozinho.
A curiosidade infantil de contemplar algo ainda mais indefeso! Alguns vizinhos tiveram exatamente a mesma idéia e o miúdo quarto do recém-nascido estava atapetado de mulheres, gordas em sua maioria, vestindo shorts de lycra. A exceção era a mãe da criança, magricélia. Meu irmão entrou dentro do quarto se esgueirando e contorcendo como se fosse um gato. Eu me postei na porta e o esperei, captando apenas sonoridades, privado de ver qualquer coisa além da muralha de corpos enormes. “O nome dele é Diônatas”. “é tão clarinho!” “ele tem olho verde, a Célia botou foi quente!” “Vixe!”
Eu já não agüentava mais tanta chatice quando Horácio reaparece chorando. Assustado, perguntei o que havia acontecido. Mas ele só balançava a cabeça, a boca aberta enormemente sem emitir qualquer som. Ele caminhou de volta pra casa, vagaroso, sem mudar a expressão do rosto. Quando chegamos, ele entrou no banheiro e demorou-se longamente. Meu medo crescia na mais absoluta aflição e resolvi falar tudo o que aconteceu pra nossa avó, que cuidava da gente e morava na casa ao lado. Junto com ela chamei Horácio aos berros, enchendo a casa com o ar pesado dos meus pulmões. Estávamos eu, Vó dos Anjos, a caçula, tia, prima, todos alvoroçados numa balbúrdia que mais parecia querer derrubar a porta com a força do vozerio.
Derrubamos a porta e no chão encontramos Horácio caído. Vó dos Anjos passou mal e enquanto eu, completamente zonzo, me aproximava dele, o restante do grupo pôs-se a acudir minha velha avó. Ele apenas adormecera. Eu gritei que ele estava bem, beijando-lhe os cabelos na maior felicidade do mundo. Ele despertou empurrando meu rosto e não entendia nada do que se passava. Ajudamos Horácio a levantar e na cozinha o sentamos. Vó dos Anjos passou a dar ordens: que limpasse isso, tirasse aquilo do meio do caminho. Minha tia apressou-se em preparar uma vitamina pra ele melhorar da fraqueza. Eu sabia que o ocorrido nada tinha a ver com falta de força ou má alimentação, não. Mas o susto que tomei me deixou sem coragem de ir fuçar o que ocorrera no quartinho do recém-nascido, filho da vizinha.
Na manhã seguinte, o aroma de flores de cajueiro estava ainda mais intenso. Saí para o quintal e me sentei debaixo do sol, exalando o ar puro. Passei a observar uma dança de borboletas e as cores de folhas, flores e asas eram tão vivas quanto intensas. Meu irmão ainda dormia e fui observá-lo através do basculante. Dormia pesado. Instantaneamente, ao relembrar o dia anterior, o ar é cortado pelo mesmo vozerio, o mesmo clamor de gritos. Espantado e estático, espero mais um pouco antes de me mover. O som cresce e então reconheço ser apenas algo semelhante à ontem, sendo agora a vez de outras vozes aflitas preencherem o dia de pranto. Corro em direção às vozes, elas vêm da rua. Do portão da frente vejo os vizinhos correrem para a casa de Célia. Com as pernas pesadas, caminho até lá e vejo algumas mulheres gordas saindo para a calçada enxugando lágrimas. Pergunto a uma delas, a que está mais próxima de mim e distante da entrada, o que tinha acontecido. “O bebezinho da Célia morreu!” ela respondeu um tanto forçada. Eu olhei pro chão, mais para desviar a vista da mulher, e lá se alinhava uma fila indiana de formigas. Segui o caminho delas até minha casa, onde elas desviaram e entraram num grande buraco ao pé de uma castanheira.
Fui ver se Horácio já tinha acordado. Pensei mais de uma vez se o dizia ou não o que havia acontecido. Resolvi contar e arriscar saber o que de fato ocorreu enquanto ele esteve no quarto de Diônatas. Através do basculante vi que ele fitava o teto, o olhar perdido. Quando eu o chamei ele me olhou como se fosse responder ao que eu iria perguntar. Calei, não perguntei nada. Ele disse “eu sei” e virou-se, voltando a dormir.

2 comentários:

Unknown disse...

Esse Horácio... Quase uma oração ante a chegada da hora! Da tua flor do Lácio, eu diria que é Rosa. Sim, lembrou-me a mística de um Guimarães, sem querer tecer comparações. Fé pura, mística no sumo do cajueiro, nordestino cheiro que diz mais que a eloqüência tola Bilaquiana. Bebi a tua curta história com gosto de sede sob o sol: deliciosa!

Tarco disse...

entaum ja valeu