quarta-feira, 30 de maio de 2007

Carta número um: a João.

(segue a 1a carta, que convido a responderem, e iniciarmos então a sessão de cartas que propusemos no Lançamento da Cauin semana passada.)


[de uma história de morte e vida]

João, sou um perdido. Vou chamar todos os amigos e jogar xadrez, tomar todas de uma vez, ouvir música sozinho. Abandonar um não-caminho e não dizer uma palavra, palavra sequer, nem a você nem a ela.
Poderia te bater e dizer maldito, traidor, vingar-me e chamá-la à porta, que hipócrita, a mim és morta, tanto mais quanto um ex-amor. Poderia tanto porque nada posso, perdi-me em dois nomes vazios, mas vou achar-me, achar-me e lavar as mãos sujas de tinta; vocês são cinza, cinza de vazio torpe.
Sabe essa sombra, João? É a tua. Tinha um amigo, abrigo de sempre, filmes domingo, trabalho em conjunto, uma equipe, que bobagem, sempre sonhei. De mim esperasse o máximo e não te frustraria, agora que tens, homem? Terá de mim silêncio, não mais um riso ou sequer ódio; e faça o favor de não tocar-me, terei de lavar-me e esforçar-me por não lançar-lhe à cara algo. Não, nunca a minha mão; suja de tinta, João, nunca de ti.
Quanto a ela, que viva ou que morra. Só me arrependo dos poemas. Sagrados poemas que foram dela, antes tivesse dado a vida. Nossos corpos, nossos rostos, uma boca sôfrega, noites eternas, dias de espera, uns anos e anos. Ela era apenas uma mulher. Por mais que amasse, uma mulher. O amigo era outro, era você. Era. Era mesmo? Desejo que vinguem. Vinguem muito e um no outro. Provem-se, explorem-se, deplorem-se, ao diabo.
Se estou bêbado? Estou bem sóbrio. De uma raiva que inebria. Quero o céu de um outro dia, dois corpos frios e inertes, não quero sangue, quero frio. Mas, juro, as mãos são dignas, e só sujas de tinta.


Ainda atreve um olhar a mim? Não viro, e, se te firo, que bom, que mau. Sejam felizes. E frios.
Não digo mais que isso, bem assim: se divirtam.



[Marília Passos]

sexta-feira, 25 de maio de 2007

O último beijo à luz do sol


Mil pernas, olhos; mil braços esticados e sobrancelhas arqueadas. No lugar da pele, escamas. Da boca, uma fenda negra. Nela, entrevistas, duas presas do tamanho de um dedo indicador e uma língua que se enrodilhava ao redor de uma presa. De uma presa, disse. Da garganta, o fedor dos séculos de guerra e sofrimento acumulados. Não tinha chifres nem cauda. Na ponta do nariz, nada de macilentas verrugas. Narinas pulsantes.

Era ela, a terrível criatura que a todos devorava, dentes agudos, e consumia, estômago dilatado, em suas entranhas, grande fornalha de fogo e gelo, elementos auto-excludentes.

Adiante, um menino. Ao seu lado, uma menina. Trocavam beijos quando a coisa se aproximou. Fedia, horrenda, e de sua boca, como costuma acontecer nos filmes de terror, escorria um líquido escuro e pastoso. O corpo parecia ter sido besuntado com manteiga. Brilhava.

Ela tinha garras; ele também. Extremoso, o casal de meninos brincava. Os dois, olhos de fogo e cabelos espetados. Porco-espinho. Há pouco, separados. Haviam se conhecido naquele exato instante. A terra tremia, os prédios caíam, os velhos eram mortos a golpes de enxada e eles, os dois únicos exemplares de uma faixa etária pela qual o Caos tinha predileção, estavam à vontade no banco em frente à estátua do escritor. O quadro completava-se com o fundo de mar azul.

Agora beijavam-se, tocavam-se, espremiam-se um contra o outro. Consumiam-se quando a criatura os devorou.

Trabalho concluído em tempo recorde, o monstro assumiu ares de enfado. Detestava o ócio, criativo ou não. Na primeira hora do dia seguinte ao da morte do tenro casal, retornou para o seu planeta, onde, imprevista e terrivelmente, outra guerra estourara.

quarta-feira, 23 de maio de 2007

Lançamento Público da CAUIN:

Hoje no Bosque do Centro de Humanidades da UFC, às 15h, lançamos o primeiro Zine da CAUIN! Nossa primeira publicação ficou belíssima ;) os textos muito bons, a diamagração elogiadíssima, o senhor e a senhora editores/diagramadores se garantiram ^^

Jogamos pra cima varios exemplares do zine e lançamo-nos ao vento e ao Bosque! hehehe mentira, não jogamos nada, porque tinhamos poucos: nós distribuimos entre as pessoas, e elas vão se encarregar de distribuir alguns tb :)
Quem nao foi, perdeu :P

Tratamos também de ler a nossa querida primeira publicação -suada e agitadíssimo esse trabalho, ó - na primeira Roda de Leitura do Bosque, essa quarta, 15h. Mas nao chorem, quarta que vem tem de novo :) Também às 15h, sejam todos bem vindos!
A divulgação mais pesada está sendo na Letras, e queremos expandir pra toda a UFC :) e depois partir pro mundo! hehehe


Quem souber colocar aqui a imagem do Zine, viu?, esteja convidado :) Eu me confundo toda quando vou mudar o formato dos arquivos.. .heheehe comé que põe o .pdf pra .jpg? eu sei que tem que primeiro transformar em só imagem ou coisa parecida, mas quem souber mais fácil, por favor faça as honras! :)


obs: vamos começar então aquela idéia levantada pelo Henrique: as cartas!
pode-se começar logo? o/

segunda-feira, 21 de maio de 2007

[conto]


SOU TODO OUVIDOS

A faca atravessa o interior felpudo e quente do alimento eminentemente cristão. Som matinal: bolachas, biscoitos, leite e café derramado na xícara, mesa e pernas. Porque tombou e escorreu. Tombou. O líquido ter se evadido, imprevisto, do interior branco e raso da xícara pode parecer inevitável. Um evento causador de espanto às sete da manhã de uma segunda-feira em tudo semelhante a outras tantas segundas e terças e mesmo quartas pode levar qualquer homem, senhor de contas bancárias e cartões de pagamento e também de códigos de barras, ao desespero sem fim.

Som de violão arranhado por mãos pouco habilidosas, de teclado. Do clique de uma máquina digital – um clique simulado. Do flash automático da máquina digital. Som de passos – leves no começo, arrastados no fim. O mais antigo som de passos já ouvido. Sons, se súbitos e sonoros, assustam na madrugada sépia. Ou ao meio-dia extremoso.

Som de escadas rolantes – zummmmmmm. Espátulas contra o brilho do prato. Carnes rasgadas, dilaceradas. Feijão, intestino, canal e buraco. Dentes mastigando, engolindo, língua movendo-se, retraindo-se, recolhendo-se ao som agradável de uma bossa. Som do acomodar da fera ancestral, do despertar do miolo sempre quente. Som das tábuas e das ranhuras existentes nas tábuas em cujo centro se lêem todas as leis maiores e menores.

Chovia quando saí de casa. Quando voltei, também. Som de chuva. Zissssssssssssss. Era fina, a chuva. It’s raining. As aulas de inglês. Som de pincel contra o branco da lousa, som de perguntas, respostas e perguntas sem respostas. Essas, sem som. Ou com som abaixo ou acima da capacidade de audição dos ouvidos humanos. Sons supersônicos, sons que ficam perdidos se emitidos no dia e na hora certas e convertidos em sinais contrários aos desejados.

Novo som de passos. De meias, calças. Meias-calças. Travesseiro, pomada e cremes. Som de cheiros – alguns têm um som agradabilíssimo. De gritos, gozos que antecedem ao som do chuveiro e do sabonete que desliza inaudível. Então sem som. Som do silêncio. Explico: o meu silêncio contra o seu produz faíscas cuja amplitude não chega a abalar os alicerces das sólidas construções urbanas ou mesmo as raízes das árvores centenárias fincadas a esmo por minotauros antes, ainda antes dos índios que comiam, que se comiam. Mas, ao cabo de tudo, faz crepitar fogueiras e fagulhas. Como as pedras atritadas por mãos, essas, sim, habilidosas, que resultaram na primeira tocha da estória. O som da estória é aquoso e escorre sem obstáculos. Som sem vencidos ou guerreiros. Porque som de mortos.

Talheres. Trink brink rimmmmmm. Som de copo. Geladeira aberta, geladeira fechada. Fustigando o prato. Ele respira fundo. Ela olha fundo e respira pausadamente. Ele olha raso. Permanece triste. Ora alegre, ora triste, ela inquieta-se e se ergue repentinamente. Ele passa a comer sozinho. Som da solidão. A solidão tem trilha sonora?

Som de gerúndio. Gritos do professor de português ecoando nas respostas atiradas, atrevidas do aluno, que, naquele instante, soava disperso enquanto se perdia ao longe no branco do fundo das nuvens que formavam carneiros. Como o do Pequeno Príncipe. Som de braços contorcidos, caneta vermelha no boletim, berros do pai, grunhidos e carícias da mãe. Som do futuro. Vem da garganta e assusta o menino, que se cala retraído no canto esquerdo da última cavidade ainda desconhecida da cabeça.

Som dos músculos, das estrias se alargando, dos ossos em expansão, das vitaminas e carboidratos e proteínas. Sangue que entope as têmporas, dilata e cega, enrijece o membro e corre vivo na perna ferida. Cerra punhos e cega.

Som dos hormônios assumindo o controle e da razão perdida no mato sem cachorro. Doravante, som reinante.

Som de tiros, pernas em movimento. Tic-tac-tic-tac. Relógio encimando os pensamentos. Máquina de escrever. Escreve. Datilografa. Ao fundo, gritos. Os presos. O odor de presos. Sonoridades insidiosas. Odiosas. Som dos pêlos que crescem na face, lâmina que raspa, ferida crestada. Escarro e engasgo, um velho na janela do ônibus. Ele cospe. O vento sopra, a saliva cada vez mais perto. Som do lenço no assoalho.

Onda quebrando nas pedras. Peixe frito, refrigerante e farofa. Som de redes e passos afundando na areia quente e alva. Cerveja e risos. Estão todos felizes antes das águas engolfarem o menino. Som da simples passagem do tempo.

O fim se renova, sempre. Os sons se renovam, sempre. Amém.

quarta-feira, 16 de maio de 2007

IMPERATIVOS DÚBIOS

- Silêncio!
Diz a biblioteca com ares de hospital pelo gesto da bibliotecária com modos de enfermeira. Luvas, máscaras: poeira, bolor. E os doutores estão ali, pacientes, prestes a ressuscitarem os livros do coma, antes que sejam carcomidos pelas Traças.

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- Proibido fumar!

Repreende em vermelho a boca turbulenta do cinema, irrompida da escuridão feito a própria chama do cigarro. Poltronas enfileiradas, passarelas para o trânsito livre de lanterninhas aeromoças. Pagas as passagens, o ingresso à próxima sessão. Não será preciso apertar os cintos. Desliguem os celulares e tenham todos um bom filme!

sexta-feira, 4 de maio de 2007

Aforismo

[pessoas, acho bom ter um critério de postagem, e não simplesmente postar sem sequer ler os textos dos outros. vamo fazer assim: todos postam, todos leem, e tentam comentar os textos dos amigos tb, pode ser? eu tenho tentado, e incentivar tb, mas ta dificil... vamo ver se agora dá?=]


*por Marília Passos


Entre os breves espaços do tempo não há
ninguém
ousando viver o tempo
seguindo ao som do vento
sabendo que, a todo tempo,
o tempo pode acabar.

na sua janela não era nada, meu bem
apenas o nosso espelho,
partido talvez no meio
- "parto, já tendo me partido"

é aí que te digo
da brevidade do tempo
necessidade de anseio
viver do começo ao meio
- "e o final que venha sozinho",

vez que os breves espaços de vento,
confesso
perdi no mei do caminho.

.