sexta-feira, 6 de abril de 2007

[conto]


A rebelião do ponto ou Uma história de amor

Por Henrique Araújo
Não era uma história em frangalhos, rumorosamente perdida, sem pé nem cabeça ou destituída de genitália. Tinha corpo e pernas e braços e ânus. Em aparência, um humanóide. Alguns fios de cabelos nas laterais, pêlos nas axilas e dentes amarelados a tornavam reconhecível para a maioria das pessoas, que, vendo-a, não se assustavam. Além disso, exalava. Era calva. Visto de longe, seu corpo tinha alguma simetria apenas minimamente interrompida quando, os olhos pousados em demasia, perdia qualquer coisa entre o sorriso e o olhar. Era quase imperceptível, mas estava lá. Uma superfície lisa, quase incandescente da cabeça até os pés. O fundamental, porém, era que tinha um cu.

Ele mesmo se encarregara de lhe dar um, o autor e pai da história. Afinal, sem um bom ralo, nada funciona. Inclusive uma boa história. Nos últimos dias, andava prolixo, dizendo e dizendo e espalhando entre os mais próximos – mas nunca descuidando dos distantes – a boa nova: viera. Prometia. Antevia, suspirando, resenhas aos borbotões nos jornais da cidade, cadernos especiais, entrevistas, lançamentos e coquetéis sob o mais pesado ar-condicionado. Pisar o carpete do clube novamente, ainda que arriscado, seria um ótimo remédio para as dores que vinha sentindo em todo o corpo: pontadas na espinha e coices na cabeça.

Agora, toxicamente efusivo ao café da manhã. As tardes todas gastas em sites de literatura ou fazendo os seus contatos rotineiros, comentando os blogs dos seus alunos ou folheando revistas e jornais que chegavam de todos os cantos do país. Entre uma coisa e outra, espiava a história, cuidadosamente engavetada. Era a “quarentena”. De madrugada, acordava a marcar no compasso das idéias embaralhadas possíveis respostas para as mesmas perguntas de sempre: influências, flatulências, cores empregadas, nomes de personagens, lugares, gerações e, finalmente, por que escrevia – nesta, demorava-se além da conta. A jornalista, menina decotada e simpática, sorria sem entender. No bloco de anotações, garatujas de quando ainda era criança. Ele demorava. Mais do que charme, tossir antes de responder era mesmo um lugar-comum a que todo escritor que se preze recorria e recorre sempre que se avizinha o perigo. E não responder antes do próximo pigarro também.

Final do período de ajustes e de encantamento que somente a criação lhe proporcionava. Adiante, o juízo dos carcarás. Alguns, mais afetados, declinaram imediatamente da leitura: em todos os sentidos, suja. E escatológica. O ralo ocupava muito espaço no texto, preenchia muitos vácuos. Um paradoxo: não era esse o papel do cu, preencher espaços que não lhe eram devidos. Aliás, conforme as regras do jogo literário, não era de sua alçada ocupar espaço algum. Acostumado a escrever, ele sabia das aventuras a que certos personagens, como se dotados de vida e enredados em suas próprias histórias, se impunham. Da metade para o fim da cambiante narrativa, enquanto as garrafas de café eram consumidas às dúzias e as galinhas ciscavam no quintal, mais preocupadas com minhocas, fora atacado pela certeza: o cu havia se rebelado. E isso podia estragar as coisas. Ou torná-las consideravelmente divertidas.

Era fácil, portanto, explicar o incômodo que a história seguia causando a certos espíritos de natureza comezinha. Menos por seu conteúdo de aroma e gosto duvidosos, o que, ao final de tudo, causava tanta estranheza era a sua forma descabida, com pés e cabeça e genitália à mostra. “Não se trata a literatura com tamanho descaso e irreverência”, estocara o desafeto logo à abertura de um debate na faculdade. “Lixo pós-moderno”, ajuntara, lacônico, outro. Perdido no meio do tiroteio, o pai coruja voltou-se para a estudante estonteante que fazia palavras-cruzadas na primeira fila. Sorriu. Em seguida, olhando para o fundo do extenso auditório apinhado de assinaturas, levantou-se e foi embora. Antes, porém, sob o pretexto de ver a calcinha de uma antiga colega de cátedra que, até então, permanecera igualmente silenciosa, deixou escorrer a caneta.

“A narrativa foi escrita sob o signo da delinqüência”. A frase, pinçada da entrevista com o autor, reluzia, dias depois, nas bancas da cidade, mergulhando-o em qualquer sentimento cuja essência, em essência, desconhecia. Se alegria ou cumplicidade ou realização ou voracidade ou tristeza apenas, temperada com certa fúria ou animosidade, tudo isso lhe escapava naquele instante. “A intenção era, até os limites do autor, implodir algumas construções estabelecidas sem a sua concordância e ‘à revelia das minhocas que, sem motivo aparente, eram copiosamente devoradas no fundo do meu quintal’”. De fato, uma total perversão comer velhinhas caquéticas, havia pensado enquanto aguardava o troco na padaria. A seu lado, uma senhora já bastante idosa lhe dirigia palavras de bom-agouro. Ele sorria sempre amarelo esverdeado. Às vezes, cinza. Correu ao receber as moedas, deixando algumas para trás.

Uma boa história deve, obrigatoriamente, ter um bom ralo. E que este sirva aos propósitos de cada um, e que, ante qualquer júri, em qualquer lugar, lhe seja outorgado o título máximo em honra aos dias dedicados ao consumo de nossas impurezas. O trecho anterior tinha sido cortado da história pelo editor, um homem de barriga e estupidez proeminentes. O próprio pai, achando-o por demais enigmático, resolveu que o melhor seria colocá-lo de lado e aguardar até que fizesse algum sentido. Não fez. Um dia, por mais absoluta falta do que fazer, publicou-o, solto e sem maiores explicações, no seu blog. Alguém leu e gostou e a ele acrescentou outra história – que passou a comer do mesmo esterco e voltar para casa de barriga cheia. Era apenas o começo de uma série de falsos entendimentos que, ao final, desaguariam num dos maiores romances coletivos da história. Ele ficou satisfeito. A jornalista, mais ainda, largando o bloquinho florido para entrar luzidia no carro. Para ambos, era o fim de mais um dia de trabalho extenuante e o começo de uma vida povoada de ralos.

4 comentários:

Henrique Araújo disse...

em resumo: queria e quero falar dos buracos de cada um de nós. o ânus, sem querer explicar o conto, é metafórico. um desvão como qualquer outro.

no mais, tu achou lúgubre mesmo?!

abraços!

Unknown disse...

Sim, os vãos interiores, tão carregados desse bolo cotidiânus que é necessário expurgar de alguma forma. Eis aí a tal "verborragia-erróida" a permear os Blogs ou as más notícias de Jornal, tão úteis ao asseio do desbunde fecal ledor. Mas a massa pede bis se o fedor atinge grandes proporções... Que cagada!

Henrique Araújo disse...

a gente tá esperando alguma coisa tua, paola!

MAKSIM ALEK disse...

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