segunda-feira, 21 de maio de 2007

[conto]


SOU TODO OUVIDOS

A faca atravessa o interior felpudo e quente do alimento eminentemente cristão. Som matinal: bolachas, biscoitos, leite e café derramado na xícara, mesa e pernas. Porque tombou e escorreu. Tombou. O líquido ter se evadido, imprevisto, do interior branco e raso da xícara pode parecer inevitável. Um evento causador de espanto às sete da manhã de uma segunda-feira em tudo semelhante a outras tantas segundas e terças e mesmo quartas pode levar qualquer homem, senhor de contas bancárias e cartões de pagamento e também de códigos de barras, ao desespero sem fim.

Som de violão arranhado por mãos pouco habilidosas, de teclado. Do clique de uma máquina digital – um clique simulado. Do flash automático da máquina digital. Som de passos – leves no começo, arrastados no fim. O mais antigo som de passos já ouvido. Sons, se súbitos e sonoros, assustam na madrugada sépia. Ou ao meio-dia extremoso.

Som de escadas rolantes – zummmmmmm. Espátulas contra o brilho do prato. Carnes rasgadas, dilaceradas. Feijão, intestino, canal e buraco. Dentes mastigando, engolindo, língua movendo-se, retraindo-se, recolhendo-se ao som agradável de uma bossa. Som do acomodar da fera ancestral, do despertar do miolo sempre quente. Som das tábuas e das ranhuras existentes nas tábuas em cujo centro se lêem todas as leis maiores e menores.

Chovia quando saí de casa. Quando voltei, também. Som de chuva. Zissssssssssssss. Era fina, a chuva. It’s raining. As aulas de inglês. Som de pincel contra o branco da lousa, som de perguntas, respostas e perguntas sem respostas. Essas, sem som. Ou com som abaixo ou acima da capacidade de audição dos ouvidos humanos. Sons supersônicos, sons que ficam perdidos se emitidos no dia e na hora certas e convertidos em sinais contrários aos desejados.

Novo som de passos. De meias, calças. Meias-calças. Travesseiro, pomada e cremes. Som de cheiros – alguns têm um som agradabilíssimo. De gritos, gozos que antecedem ao som do chuveiro e do sabonete que desliza inaudível. Então sem som. Som do silêncio. Explico: o meu silêncio contra o seu produz faíscas cuja amplitude não chega a abalar os alicerces das sólidas construções urbanas ou mesmo as raízes das árvores centenárias fincadas a esmo por minotauros antes, ainda antes dos índios que comiam, que se comiam. Mas, ao cabo de tudo, faz crepitar fogueiras e fagulhas. Como as pedras atritadas por mãos, essas, sim, habilidosas, que resultaram na primeira tocha da estória. O som da estória é aquoso e escorre sem obstáculos. Som sem vencidos ou guerreiros. Porque som de mortos.

Talheres. Trink brink rimmmmmm. Som de copo. Geladeira aberta, geladeira fechada. Fustigando o prato. Ele respira fundo. Ela olha fundo e respira pausadamente. Ele olha raso. Permanece triste. Ora alegre, ora triste, ela inquieta-se e se ergue repentinamente. Ele passa a comer sozinho. Som da solidão. A solidão tem trilha sonora?

Som de gerúndio. Gritos do professor de português ecoando nas respostas atiradas, atrevidas do aluno, que, naquele instante, soava disperso enquanto se perdia ao longe no branco do fundo das nuvens que formavam carneiros. Como o do Pequeno Príncipe. Som de braços contorcidos, caneta vermelha no boletim, berros do pai, grunhidos e carícias da mãe. Som do futuro. Vem da garganta e assusta o menino, que se cala retraído no canto esquerdo da última cavidade ainda desconhecida da cabeça.

Som dos músculos, das estrias se alargando, dos ossos em expansão, das vitaminas e carboidratos e proteínas. Sangue que entope as têmporas, dilata e cega, enrijece o membro e corre vivo na perna ferida. Cerra punhos e cega.

Som dos hormônios assumindo o controle e da razão perdida no mato sem cachorro. Doravante, som reinante.

Som de tiros, pernas em movimento. Tic-tac-tic-tac. Relógio encimando os pensamentos. Máquina de escrever. Escreve. Datilografa. Ao fundo, gritos. Os presos. O odor de presos. Sonoridades insidiosas. Odiosas. Som dos pêlos que crescem na face, lâmina que raspa, ferida crestada. Escarro e engasgo, um velho na janela do ônibus. Ele cospe. O vento sopra, a saliva cada vez mais perto. Som do lenço no assoalho.

Onda quebrando nas pedras. Peixe frito, refrigerante e farofa. Som de redes e passos afundando na areia quente e alva. Cerveja e risos. Estão todos felizes antes das águas engolfarem o menino. Som da simples passagem do tempo.

O fim se renova, sempre. Os sons se renovam, sempre. Amém.

Um comentário:

Marília Passos disse...

conto do henrique lido por mim hj no lançamento público da CAUIN ;D

jogamos pra cima varios exemplares do zine e lançamo-nos ao vento e ao Bosque da UFC! hehehe
mentira ,n jogamos nada, pq tinhamos poucos xp
nos distribuimos entre as pessoas, e elas vao se encarregar de distribuir alguns tb :)


quem nao foi, perdeu :P primeira Roda de Leitura no Bosque, essa quarta, 15h.
Mas nao chorem, quarta que vem tem de novo :)

e sim, henrique, como eu te disse la, eu gostei sim. dos sons, sobretudo. ate pq som tem no texto todo, óbvio XD hehehe
gostei e pronto, nem adianta me contradizer dizendo q eu falei do plagio.
é mentira :P
=*