sábado, 21 de abril de 2007

(achado meio perdido)

A rua repleta de gente. Mais curiosos que amigos, seguindo com os olhos o corpo caído no chão. Os braços, torcidos dum jeito que não pareciam dele; as pernas, ninguém olhava, estavam em carne viva, do atrito com o asfalto. Um mundo inteiro vendo, alguém ligando pro
hospital.
Ninguém sabia se vivo, e estranhavam a ausência de poças de sangue. Assustados, mas anestesiados pela recorrência das cenas. Vez ou outra, naquela rua, os acidentes eram quase repetidos: motos e carros, bicicletas, atropelamentos. Todos achavam errado, reclamavam junto ao governo, e nada.
A cena era, pois, repetida, mas o caso de hoje era diverso. Por ser quem era e pelas conseqüências do acidente.
Passou três meses no hospital o profeta da rua. Chamado mendigo, vidente, beberrão ou o que fosse, fato é que sempre sabia o que viria no amanhã. Irônico era não ter sabido que não devia atravessar, naquele exato dia, a mesma rua de sempre. Ou sabia?

Decorridos os três meses, milagrosamente voltou ao convívio da rua. Não demorou pra que percebessem que não tão milagrosamente assim.Não falava mais com as pessoas. Era indiferente aos chamados, aos presentes, às crianças, a tudo. Não reconheceu seu filho, não voltou a falar dos pássaros, do mundo, do futuro.
Tão logo sentenciaram que o profeta perdera a memória. Outros, que lhe faltava a fala. Que um ou outro fosse certo, a verdade é que tudo ele entendia. E podia falar, se quisesse, mas não queria.Talvez tivesse mesmo perdido a memória. O que ninguém sabia é que, no momento do atropelo, vira pela última vez seu céu de criança.E, naquele instante, tinha de vez perdido as nuvens.

[Marília Passos]

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