sexta-feira, 25 de maio de 2007

O último beijo à luz do sol


Mil pernas, olhos; mil braços esticados e sobrancelhas arqueadas. No lugar da pele, escamas. Da boca, uma fenda negra. Nela, entrevistas, duas presas do tamanho de um dedo indicador e uma língua que se enrodilhava ao redor de uma presa. De uma presa, disse. Da garganta, o fedor dos séculos de guerra e sofrimento acumulados. Não tinha chifres nem cauda. Na ponta do nariz, nada de macilentas verrugas. Narinas pulsantes.

Era ela, a terrível criatura que a todos devorava, dentes agudos, e consumia, estômago dilatado, em suas entranhas, grande fornalha de fogo e gelo, elementos auto-excludentes.

Adiante, um menino. Ao seu lado, uma menina. Trocavam beijos quando a coisa se aproximou. Fedia, horrenda, e de sua boca, como costuma acontecer nos filmes de terror, escorria um líquido escuro e pastoso. O corpo parecia ter sido besuntado com manteiga. Brilhava.

Ela tinha garras; ele também. Extremoso, o casal de meninos brincava. Os dois, olhos de fogo e cabelos espetados. Porco-espinho. Há pouco, separados. Haviam se conhecido naquele exato instante. A terra tremia, os prédios caíam, os velhos eram mortos a golpes de enxada e eles, os dois únicos exemplares de uma faixa etária pela qual o Caos tinha predileção, estavam à vontade no banco em frente à estátua do escritor. O quadro completava-se com o fundo de mar azul.

Agora beijavam-se, tocavam-se, espremiam-se um contra o outro. Consumiam-se quando a criatura os devorou.

Trabalho concluído em tempo recorde, o monstro assumiu ares de enfado. Detestava o ócio, criativo ou não. Na primeira hora do dia seguinte ao da morte do tenro casal, retornou para o seu planeta, onde, imprevista e terrivelmente, outra guerra estourara.

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